No Reino de Portugal, em finais do século XIII, os representantes das mais antigas famílias de infanções do entre Douro e Minho, nos relatos linhagísticos que produziram, fizeram remontar as suas origens, também, a ascendentes árabes. Tudo na procura de uma autoridade, uma antiguidade que legitimasse a sua invocação de velha nobreza, ante o poder hegemónico da recente Casa Real portuguesa. Desta forma, aqueles senhores afirmaram a maior antiguidade das suas famílias, declarando que as mesmas, havia séculos, eram os verdadeiros conquistadores, construtores do reino de Portugal. A Casa Real era de recente data e de origem estrangeira, transpirinaica; não, como eles, de secular origem peninsular, na qual se entroncava também o sangue árabe. Assumem, portanto, uma clara origem, étnico-cultural, moçárabe, origem onde se fundiram as elites cristãs e as elites muçulmanas, e dando, portanto, substância sociológica à cultura andalusi, cultura simbiótica, e que constituiu o quadro de referência para os diferentes reinos, muçulmanos, mais a sul, e cristãos, mais a norte, até meados do século XI. Tudo isto nos chegou através do mais antigo Livro de Linhagens de toda a Europa, e matriz da genealogia senhorial de toda a Hispânia. Referimo-nos concretamente ao Livro Velho de Linhagens. Aquela obra é o último sinal, o testemunho derradeiro de um tempo, de uma cultura de traços senhoriais, feudais e rurais, no momento em que a mesma está sendo definitivamente substituída por uma nova cultura régia, cortesã e urbana - António Rei
 

Memória árabe da nobreza moçárabe portucalense (séculos X-XIII)

A antiga nobreza Portuguesa viveu dominada e governou o norte de Portugal, a região situada entre os rios Douro e Minho, durante os séculos X e XIII. Essa nobreza foi constituída por Cinco Linhagens: os senhores de Sousa, os Senhores da Maia, os Senhores do Baião, os Senhores de Bragança e os Senhores da Riba Douro. Nós os chamamos de "portucalenses", porque eram uma nobreza guerreira, cuja origem remonta bem antes do surgimento do Reino de Portugal; e também os designamos de "moçárabes" porque eles eram uma espécie de "senhores da fronteira", em situação intermediária entre o norte cristão e o sul islâmico. Mas não foram apenas os condicionalismos geográficos e culturais, que os foram transformando em elementos de simbiose cultural; foi, especialmente, a afirmação, de que eles deixaram memória escrita, de que eles eram uma prova da simbiose, genética ou biológica, entre cristãos e árabes.

1. Introdução

A Nobreza Portucalense Moçárabe foi aquela que dominou no Norte de Portugal, na região entre os rios Douro e Minho, desde o século X até ao século XIII. 

Chamamo-lhe de “portucalense” por se tratar de uma nobreza guerreira cuja origem é bastante anterior à do surgimento do Reino de Portugal; e também a designamos de “moçárabe” porque ela foi marcada, indelevelmente, pela situação intermédia, entre o norte cristão e o sul islâmico. 

E, como veremos adiante, não foram apenas os condicionalismos geográfico e cultural que os foi tornando elementos de simbiose cultural. Foi também, e principalmente, e disso deixaram relação, a simbiose genética ou biológica.

Aquela nobreza foi constituída por Cinco Linhagens, ou ao menos foi dessas que nos consta memória: os Senhores de Sousa, os da Maia, os de Baião, os de Bragança e os de Riba Douro (1).

Mas foi a partir da linhagem dos Senhores da Maia que a ascendência árabe chegou a todas aquelas outras famílias de senhores portucalenses.

Tudo isto nos chegou através do mais antigo Livro de Linhagens de toda a Europa, e matriz da genealogia senhorial de toda a Hispânia. Referimo-nos concretamente ao Livro Velho de Linhagens.

1.1. O Livro Velho de Linhagens

Para quem não está familiarizado com estes textos, o que é o Livro Velho de Linhagens (LVL) (2)? O LVL é o mais antigo nobiliário português (3). O nosso contacto com as Linhagens lá tratadas levou-nos a constatar que em alguns dos antropónimos, e também em alguns dos conteúdos textuais, existem sinais que apontam para uma certo grau de “arabização” da realidade social dos primórdios das Linhagens tratadas naquela obra (4).

1.1.1. O LVL e a sua contextualização politico-social

O Livro Velho de Linhagens (LVL) apareceu quando, para a antiga nobreza de raiz portucalense, se tornou sensível uma crise social, com reflexos directos na sua economia e no seu estatuto.

O LVL é, antes de tudo, um manifesto de revolta, onde os membros daquela velha nobreza fizeram, simbolicamente, a defesa da sua condição, claramente em perigo, e das suas Linhagens, as quais estavam ficando seriamente ameaçadas com a perda de riqueza, poder e protagonismo. O “Livro Velho” [...] Afirma-se como texto de combate ideológico, como manifesto da sociedade senhorial” (5).

Aquela obra é o último sinal, o testemunho derradeiro de um tempo, de uma cultura de traços senhoriais, feudais e rurais, no momento em que a mesma está sendo definitivamente substituída por uma nova cultura régia, cortesã e urbana.

1.1.2. a sua origem

É hoje um dado adquirido de que o Livro Velho de Linhagens foi redigido no Mosteiro de Sto. Tirso, tendo sido composto entre cerca de 1285 e 1290, a mando de Martim Gil de Riba de Vizela, senhor que assumiu a herança simbólica e linhagística dos Senhores da Maia, que lhe vinha por sua mãe, a primogénita do último dos Senhores daquela linhagem (6). O Mosteiro de Sto. Tirso, fundado por um antepassado materno daquele Martim Gil de Riba de Vizela, estava, desde a sua própria origem, intimamente ligado à memória daquela linhagem, pois nele fora constituído, desde a sua fundação, o panteão familiar dos Senhores da Maia (7).

1.1.3. os seus conteúdos

O “Livro Velho” não é conhecido na sua forma integral, ou porque não chegou a ser completado; ou porque perdeu algumas das suas partes constitutivas. Sendo afirmado no respectivo ‘Prólogo’ que a obra em causa trataria cinco linhagens, apenas subsistiram duas dessas cinco, e uma das quais, incompleta.

Um dos principais, ou mesmo, o então principal representante da primitiva nobreza portucalense no Reino de Portugal, aquele Martim Gil de Riba de Vizela, mandou pôr, por escrito, as memórias da sua linhagem. Mas não só as da “sua” linha ascendente de antepassados, mas também as memórias das outras quatro Linhagens com as quais os da Maia se tinham acabado por aparentar, através do casamento de mulheres da sua linhagem nas outras famílias.
 
Espaços onde dominavam as Cinco Linhagens de Infanções


Portanto, no momento da composição da colectânea genealógica, já todas aquelas linhagens estavam seguramente aparentadas, nalguns casos várias vezes, e todas acabavam por ter os mais longínquos Senhores da Maia também como seus antepassados. Veremos adiante a importância desta ascendência comum.
Quando a ascendência da Maia entrou nas outras Quatro Linhagens 
2 - Novas leituras do LVL


2.1. O LVL – linguagem histórica e linguagem simbólica


O LVL afirma a antiguidade e o prestígio das linhagens senhoriais autóctones, as famílias dos Infanções de entre Douro e Minho, por comparação com a Casa Real portuguesa, muito mais recente, atendendo principalmente à respetiva varonia borguinhona.

Mais: aquele Livro foi, ele mesmo, o produto explícito dessa manifestação de prestígio, e dessa afirmação de precedência e, portanto, de implícita autoridade e legitimidade a que se arrogavam aqueles senhores portucalenses e que lhes daria um direito inquestionável à posse dos seus domínios e direitos, relativamente ao que entendiam serem interferências não justificadas nem justificáveis, por parte dos monarcas do Reino português. Eles eram, segundo faziam constar, e disso exaravam registo, os descendentes daqueles que tinham andado a “filhar o reino de Portugal”, muito antes, várias gerações antes, de Henrique de Borgonha ter demandado aquelas paragens.

A Casa Real tinha a sua origem no casamento, ocorrido em finais do século XI, de D. Henrique de Borgonha com D. Teresa, filha de D. Afonso VI de Leão e Castela, o Conquistador de Toledo, o Imperador. Enquanto aquelas Cinco Linhagens remontavam a antigos presores ou senhores de fronteira, que desde o século IX tinham sabido sobreviver e manter as suas casas, em artifícios de diplomacia e de estratégia, colocando-se sempre algures, procurando sobreviver, escapar-se, autonomizar-se, dos poderes cristão asturiano-leonês, a norte; e do islão cordovês, a sul.

Parecem privilegiar, como os demais moçárabes, uma coexistência entre cristãos e muçulmanos peninsulares, apesar de nem sempre totalmente pacífica (8). De qualquer forma, uma atitude bem diferente da que tinham os cristãos que vinham d’além- Pirenéus para com os hispânicos em geral, quer estes fossem muçulmanos, quer fossem cristãos moçárabes. Recordemos, por mero exemplo, a conquista de Lisboa e a chacina da população, independentemente do credo professado.

Não esqueçamos que, nos finais do século X, os senhores cristãos daquelas paragens, os chefes das linhagens de Infanções, com seus colaterais e súbditos, também acompanharam Muhammad ibn Abî ‘Âmir, o famoso hâjib que se autointitulou de Al- Mansûr, na campanha militar que foi até Compostela, e também no regresso, até Lamego, onde foram agraciados pelo mesmo poderoso ministro de Córdova, e de onde cada um regressou, com os seus, para as suas terras (9). Até o local de separação nos indica que eles eram daquela região, e que aquele ponto era quase um ponto equidistante dos seus domínios: Maias, Sousões e Baiões a noroeste; Gascos ou Ribadouro a oeste; e Braganções a nordeste.

3. - A ascendência árabe dos Infanções

A coexistência que se gerou e, de alguma forma, consubstanciou a massa humana peninsular entre os inícios do século VIII e os finais do século XI, durante cerca de meio milénio, não advinha de uma tolerância e respeito pelo outro, valores e conceitos algo abstratos para o homem medieval. Aquele espírito teve origem na miscigenação que, durante todo aquele longo período, se produziu entre todos os grupos humanos, embora mais fortemente entre muçulmanos e cristãos, com os judeus mais periféricos ao fenómeno. E aquela realidade teve lugar no sul islâmico, mas também no norte cristão, e não apenas envolvendo governantes e acordos políticos, mas cruzando a sociedade no seu todo, do monarca ao servo.

Convém, neste contexto, recordar que, por exemplo, ao nível da própria monarquia asturiana, e ainda no século VIII, os casos dos próprios reis Silo e Mauregato, que governaram, respetivamente entre 773 e 783, e entre 783 e 788, e que já foram filhos de cristãos e de muçulmanas (10).

A invocação, por parte dos descendentes dos primitivos Senhores da Maia, de uma ascendência árabe, mais exatamente, remontando à aristocracia árabe, é o argumento de base do LVL. Quando o LVL é composto todos os membros das Cinco Famílias de Infanções, como já vimos atrás, descendem dos primeiros da Maia, embora seja o representante da linhagem, Martim Gil de Riba de Vizela, que se fez cargo da empresa de pôr, por escrito, aquela memória genealógica, argumento, senão já de poder efetivo, ao menos de seguro prestígio em frente da recente Casa Real.

3.1. – A Lenda da Gaia, enquanto texto

O texto em que aparece o relato sobre a origem do primeiro dos da Maia, é designado como Lenda da Gaia (ou ainda, embora menos, como Lenda do Rei Dom Ramiro). Sendo entendido como tratando-se de um texto “lendário” ou “épico- lendário” (11), tem sido geralmente emparelhado com outros relatos com origem na nobreza peninsular, como o que fala da origem dos Haros, que ascenderiam à ninfa Dama de Pé-de Cabra; ou como o que, falando dos Marinhos, os faz remontar à sereia Dona Marinha.

Estes últimos casos, apesar de terem um substrato histórico minimamente comprovável, têm passagens e personagens que não são apenas lendários, são claramente eivados de características fabulosas, o que de facto não acontece com a Lenda da Gaia, pois esta, além de não ter personagens fabulosos, contém informações que são passíveis de uma contextualização e confirmação cronológica, o que lhe vai dando maior realidade historiográfica e cada vez menos contornos lendários. No que concerne ao “rei Ramiro” que surge no relato, tem-se procurado precisar se o monarca que aparece no relato se trata, efectivamente, do monarca Ramiro II das Astúrias, ou se se trataria de um homónimo daquele (12).

3.1.1. - Novos dados sobre “o rei Ramiro”

Sobre este ponto, queremos trazer aqui novas informações que nos ajudam a situar o infante Ramiro, antes de ser rei e depois de o ser (13), na região onde decorre a trama relatada na Lenda da Gaia.

Uma notícia provém de uma fonte árabe, o Muqtabis de IbnHayyân (14), portanto insuspeita, e ainda para mais corroborada pela cristã Crónica de Sampiro.

Diz-nos a fonte árabe Muqtabis, que entre 925 e 931: “Ramiro filho de Ordonho [...] detinha a região entre o oeste da Galiza e os limites de Coimbra”15;e na Crónica de Sampiro (em versão silense), encontramos: (“Era DCCCCLXIII [963 (– 38 = 925)]. Mortuofroyla [...] Ramirus in partes Visei”)(16). Portanto a fonte cristã, aquando da morte de Fruela II em 925, situa Ramiro, o futuro rei, “nas partes de Viseu”, ou seja na região de Lafões. Atendo-nos à fonte árabe, coloca-o num espaço entre o curso do Douro e os limites a sul da região de Coimbra, no mínimo até ao Mondego. Ambas as fontes coincidem, assim, com a presença do infante Ramiro na região, atestada pelo menos entre 925 e 933. (17) Parece, pois, confirmado que se trataria efetivamente de Ramiro, futuro Ramiro II e não de outro homónimo, mesmo que parente próximo daquele.

4. Análise de novos dados linguísticos de origem árabe

4.1. “Alboazar”

Vamos analisar a questão relativa à denominação do filho do Rei Ramiro e de Artiga.

No LVL quando diz que o rei Ramiro pôs nome ao filho, chama-o de “Alboazar”. Se a este termo juntarmos “Cid” (que ausente no LVL, aparece no entanto em LL), teremos a expressão “Cid Alboazar”. Agora vejamos a seguinte passagem, na parte final do relato, que é muito esclarecedora, por sinal, a vários níveis: “o padre [...] lhe punha este nome porque seria padre e senhor de muito boa fidalguia” (o sublinhado é nosso). Mais do que antropónimo do filho, trata-se, na realidade, da tradução completa, em português, da expressão:

ابوالأعصارسید

Sayyid Abû l-A’ṣâr

“Alboazar” sendo a transcrição da expressão árabe supra Abû l-A’ṣâr (18), que é traduzível por “pai, epónimo ou origem das linhagens”, ou seja, concorda plenamente com a explicação medieval anterior: “padre [...] de muito boa fidalguia”. Se se lhe juntar o “Cid” (19) (presente no relato similar constante no Livro de Linhagens [LL] do Conde D. Pedro), e que significa “Senhor”, teremos a reconstituição completa da expressão árabe que aparece atribuída à fala do rei Ramiro.

O termo “Alboazar”, que transcreve a sinónima expressão árabe, terá tido uma função de título, de identificação dos primórdios da linhagem, pois surge integrado na onomástica das primeiras gerações dos da Maia. O filho do monarca asturiano, que aparece apenas designado por um conjunto de titulaturas, poder-se-ia chamar Lovesendo Ramires, ser filho de Ramiro e pai de Alboazar Lovesendes. Este último, poderia ter nascido por volta de 950, e teria cerca de 28 anos quando da fundação do mosteiro de Sto Tirso, em 978. E assim poderá ser resolvida a questão: porque razão
Aboazar é Lovesendes e não é Ramires (apesar do relato do LL pretender colmatar essa falha)?

A verdade é que não conhecemos, de facto, para o filho de Ramiro, um nome pessoal, nem um possível patronímico para além da titulatura de Sayyid Abû l-A’ṣâr.

4.2. “Artiga”

Vejamos agora a onomástica da mãe de Cid Alboazar Lovesendo Ramires. Surge o nome com as variantes Artiga e Ortiga (20).
 Para Artiga não encontrámos nenhum nome árabe de semelhante fonética, e cujo significado se adequasse ao contexto de cariz genealógico em causa. Assim, aventamos que o nome seria, efetivamente «‘Arîqa»  عریقة e ao qual, por lapso de copista, nalgum
momento, a yâ (ی) foi escrita como tâ ( ت), tendo os pontos diacríticos inferiores passado a
superiores (21), e dando origem à palavra عرتقة «‘Artiqa».

Um outro fenómeno fonético corrente na linguagem comum árabe, mesmo na atualidade, é a pronúncia da gutural “q” como “g”, facto que também se constata nesta palavra, originando finalmente a forma “Artiga” que surge no texto linhagístico.

Retornando à original «‘Arîqa» عریقة, este termo significa « “a que vem de nobreza e linhagem” e / ou “a que tem nobreza e linhagem” », o que encaixa perfeitamente no contexto genealógico em presença, e acarretará, naturalmente, ambos os significados.

O LVL não tem qualquer passagem que traduza o termo ‘Arîqa, mas no LL encontramos “dona Artiga que era d’alto linhagem”, o que mais uma vez vem confirmar, que o termo árabe é próprio e se encontra bem traduzido.

«‘Arîqa», não sendo, em aparência, um título, não é, no entanto, de descartar que este nome possa ter algo de honorífico, uma vez que a essa senhora devem os da Maia, originalmente, a sua nobilitas árabe: ela vinha de nobres (descendia de califas e do próprio Profeta), ela tinha nobreza e transmitiu-a à descendência. É um nome, no mínimo, matricial, no sentido etimológico (de mater) completo desta palavra.

4.3. Cultura árabe no Mosteiro de Sto Tirso

O autor da versão original do LVL, por tudo o que ficou dito atrás, teria acesso à língua árabe. Ou porque ele mesmo a conhecia, ou porque alguém próximo lhe facultaria as informações necessárias. Se esta versão original não tiver sido traduzida do árabe antes da sua utilização como fonte do LVL, então o redactor deste, ou a equipa que o integrava teria algum elemento com o necessário conhecimento do idioma árabe.

Pois quem redigiu aquela expressão “Sayyid Abû l-A’ṣâr” seria, não apenas um bom conhecedor do idioma árabe, mas conheceria mesmo a nomenclatura genealógica árabe, pois a expressão utilizada, revela, toda ela, erudição e conhecimentos daquela natureza. E da mesma forma quem traduziu a expressão em causa, pois ela encontra-se bem traduzida.

Será que o próprio autor seria ele mesmo um letrado com origens moçárabes, que tomara votos naquele Mosteiro? (22) Ou haveria, mais tarde, quando da composição do LVL, em Sto Tirso, algum árabe letrado, escravo ou convertido, que auxiliasse o redactor do LVL? Não esqueçamos que por essa mesma época em que estava a ser composto o LVL, se estava traduzindo, também em meio senhorial, o chamado Livro de Rasis, com recurso a muçulmanos letrados que integravam as equipas de tradutores (23).

5. A nobilitas árabe

Desta forma, com a composição deste Livro de Linhagens, os da Maia, e por intermédio deles todas as outras linhagens referidas, descendiam de um filho de uma nobre árabe, com parentescos emirais e califais. Era, portanto, a ascendência árabe que tornava os da Maia “os mais nobres em todas as Hespanhas”. Eles, e todos os que deles descendiam passavam, em consequência daquela origem, a aceder a essa condição de elite, de nobilitas, que lhe vinha do sangue árabe, e que eles consideravam por cima de tudo o que viesse por mercê de um rei cristão, fosse ele asturiano, leonês ou português. A sua nobreza vinha-lhes no sangue, e não dependia, em nada, daquilo que qualquer monarca cristão lhes pudesse dar ou tirar.

E se existiram moçárabes, que o foram por apenas integrarem a simbiose cultural hispânica, será que não se poderão considerar moçárabes aqueles que além de viverem numa realidade social e cultural mesclada, foram ainda, eles mesmos, também a expressão biológica dessa realidade civilizacional? Não esqueçamos, também, que vários califas de Córdova, como ‘Abd al-Rahmân III e Al-Hakam II, foram filhos de mulheres cristãs do norte peninsular.

Por intermédio do LVL aquela ascendência árabe permaneceu, e permanece, na nossa memória; mas na descendência daquelas Cinco Linhagens estão hoje a população portuguesa, o todo da população hispânica, e delas passou a todos os países, americanos, africanos, asiáticos e oceânicos que tiveram contactos históricos e civilizacionais com os povos ibéricos. Ou seja, está também no nosso DNA ou ADN.

Proposta Genealógica

Queremos terminar este estudo com uma Proposta Genealógica assente, basicamente, em três fontes, uma árabe, a Jamhara, tratado genealógico hispano-árabe da autoria de Ibn Hazm (24) (grande erudito hispano-árabe dos séculos X-XI d.C.); o Liber Testamentorum de Lorvão (25) e o Livro Velho de Linhagens. (26)

Tivemos ainda em atenção o nosso trabalho “Descendência hispânica do Profeta do Islão – exploração de algumas linhas primárias”, publicado recentemente (27).

A partir da fonte árabe pretendemos seguir o percurso de ramos Omíadas colaterais ao ramo emiral/califal de Córdova, desde o Médio Oriente até à península Ibérica, pois não parece genealogicamente viável entroncar ‘Arîqa / Artiga naquele último. Com o Liber Testamentorum procurámos situar, na onomástica, no tempo e no espaço, alguns membros de um daqueles ramos omíadas, que apresentassem viabilidade de entroncamento com a mãe de Lovesendo Ramires. O Livro Velho de Linhagens completou, necessariamente, o quadro.
 
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Fontes: Jamhara, de Ibn Hazm; Livro Velho de Linhagens; e Liber Testamentorum, do Mosteiro de Lorvão- (NOTA: a grafia dos títulos das fontes é idêntica à dos nomes que delas foram obtidos para compor esta proposta genealógica).

[A introdução é adaptada do ensaio sobre o mesmo assunto de António Rei, revista Diálogos Mediterrânicos, nr 4, Junho de 2013 - www.dialogosmediterranicos.com.br. O restante texto é da apresentação feita no X Encontro Internacional de Estudos Medievais. Foto principal: brasão com as Armas dos Senhores da Maia, adaptação de um trabalho de Jean du Cros de 1509, Livro do Armeiro-Mor. Informação sobre o Livro Velho de Linhagens aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/Livro_Velho_de_Linhagens]
 
NOTAS

1 Sobre estas linhagens portucalenses, v. J. Mattoso, Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros. Lisboa: Guimarães & Ca. Editores, 1982; Idem, Identificação de um País. Ensaio sobre as origens de Portugal. 1096-1325. 2..ed. 2 vols. Estampa, 1985, em especial o vol. I, passim; Idem, A Nobreza Medieval Portuguesa. A Família e o Poder. 4. ed. revista. Estampa, 1994. Mais recentemente, e centrados em apenas uma das linhagens, Odília Gameiro publicou A Construção das Memórias Nobiliárquicas Medievais. O passado da linhagem dos senhores de Sousa. Lisboa: Sociedade Histórica da Independência de Portugal, 2000, que trata os Sousa ou Sousões; e em 2004, José Carlos Soares Machado publicou um estudo de fôlego sobre Os Bragançãos. História Genealógica de uma Linhagem Medieval (séculos XI a XIII). Lisboa: Ass. Portug. de Genealogia, 2004. Ainda de forma geral sobre todas estas linhagens, v. José Augusto de Sottomayor Pizarro, Linhagens medievais portuguesas. Genealogias e estratégias (1297-1325). Porto: Universidade Moderna, 1999, passim.

2 Livros Velhos de Linhagens [Livro Velho e Livro do Deão]. ed. crítica de J. Piel e J. Mattoso (Portugaliae Monumenta Historica. Nova serie, I). Lisboa: Academia das Ciências, 1980 (1. ed.: Os Livros de Linhagens. ed. Alexandre Herculano. Portugaliae Monumenta Historica. Scriptores, I, Academia das Ciências de Lisboa, 1861); J. Mattoso, “Livros de Linhagens”. in Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Ed. Caminho, 1993, pp. 419-421.

3 E dentro da tipologia de genealogia-prosopografia é um dos primeiros da Europa, onde os nobiliários eram, bastas vezes, esquálidas árvores genealógicas, elencando as gerações de senhores de um domínio, sem mais informações acerca deles, e ignorando ramos colaterais, a não ser que a linha primogénita se extinguisse por varonia e o domínio em causa passasse ao irmão seguinte ou à descendência desse irmão.

4 José Mattoso oscilou na direção da moçarabização dos Infanções, mas assentou a sua dúvida em relação a essa possível realidade, no facto de o domínio político-militar islâmico a norte do Douro ter sido muito breve (V. Idem, Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros. Lisboa: Guimarães & Ca. Editores. 1982, p. 39). Sabe-se, no entanto, que, desde sempre, os fluxos culturais e comerciais ultrapassam, sempre, as fronteiras políticas. Estas não podem conter aqueles. As marcas do sul islâmico entraram fortemente no norte cristão. Não esqueçamos o pormenor que se encontra no episódio da Lenda da Gaia, de o rei Ramiro ao se dirigir à serva moura que encontrou junto ao poço, o ter feito “pela aravia”. Pode ser uma mitificação, mas também pode ser uma realidade: os senhores cristãos do norte, os monarcas inclusivamente, saberiam árabe o suficiente para se comunicarem oralmente, e de forma satisfatória, com os do sul.

5 Luís KRUS. A Concepção Nobiliárquica do Espaço Ibérico (1280-1380). Lisboa: FCG / JNICT, 1994, p. 70, n. 60.

6 Sobre Martim Gil (I) de Riba de Vizela, v. Leontina Ventura. A Nobreza de Corte de Afonso III. II vols. Coimbra: FLUC. Dissertação de Doutoramento, 1992, policop.; J. Mattoso, “Livros de Linhagens”. in Dicionário da Literatura Medieval Galega e Portuguesa. Lisboa: Ed. Caminho, 1993, pp. 419-421; A. Rei, “Os Riba de Vizela, Senhores de Terena (1259-1312)”, Callipole 9 (2001), Câmara Municipal de Vila Viçosa, pp. 13-22, para aquele senhor, especialmente pp. 17-19.

7 A. Rei, “Os Riba de Vizela, Senhores de Terena (1259-1312)”, passim.

8 O facto da submissão à Igreja de Roma e à «clunização» do cristianismo portucalense se dever também à proximidade que se dera entre as Casas de Leão e Castela, por um lado, e da Borgonha, por outro, e o facto de tal processo não ter sido nada pacífico, bem pelo contrário, poderá ter estado presente na mente de Martim Gil de Riba de Vizela, herdeiro dos Senhores da Maia, por linha feminina, quando ordenou que se compusesse o Livro Velho de Linhagens, onde exaltava as origens dos seus antepassados e dos outros senhores naturais, sobre a do monarca de Portugal, directo descendente daquele Henrique.

9 Al-Mansûr quando regressou da sua expedição a Compostela, ao despedir-se, em Lamego, dos condes moçárabes do actual norte português, de entre Minho e Mondego(as cabeças das casas de Infanções naquele momento), e que o tinham acompanhado naquela mesma expedição, ofereceu-lhes os chamados “mantos de honra” com que os soberanos de Córdova costumavam presentear alguns dos seus mais importantes convidados ou principais súbditos. Eram feitos com os filamentos do chamado “abû qalamûn”, os quais lhes davam particularidades únicas, de beleza e sumptuosidade (sobre este material, sua identificação e origem, A. REI, “Santarém e o Vale do Tejo, na geografia árabe”. Arqueologia Medieval, no 9, Mértola / Porto, CAM / Afrontamento, pp. 61-75,especialmente as pp. 72-74. Mais antigo, não tão específico, mas ainda sobre este material, v. J. VALLVÉ, “La Industria en al-Andalus”, Al-Qantara I (1980), pp. 209-241, p.228).

10 Luiz de Mello Vaz de São Payo. A Herança Genética de D. Afonso Henriques. Porto: Centro de Estudos de História da Família da Universidade Moderna, 2002, p. 235, § 317.

11 A primeira acessão surge em José Mattoso (in “A família da Maia no século XIII”. Nobreza Medieval Portuguesa. A Família e o Poder. Lisboa: Estampa, 1994, pp. 331-342, p. 331), e a segunda acessão em Luís Krus (in “O Discurso sobre o passado na legitimação do senhorialismo português dos finais do século XIII”. Passado, Memória e Poder na Sociedade Medieval Portuguesa. Estudos. Redondo: Patrimonia, 1994, pp. 197-207, p. 202).

12 Luiz de Mello Vaz de São Payo afirma que o “Rei Ramiro” progenitor dos da Maia (que apenas mais tarde o LL do Conde D. Pedro chama de “Ramiro II”), não seria o monarca que figurou na História com aquele nome, mas antes um seu tio homónimo, filho de Afonso III, o Grande, que em 925, após a morte de seu irmão Fruela II, se proclamou Rei, sem sucesso, pois acabou sendo reconhecido seu sobrinho Afonso IV, filho de Ordonho II (v. Luiz de Mello Vaz de São Payo, “Ramiro II, sobrinho da Condessa Mumadona e Ramiro II progenitor da linhagem Maia”, in Genealogia & Heráldica, nos. 5/6 (2001), Porto, Univ. Moderna, pp. 230-245).

13 O Liber Testamentorum de Lorvão refere o rei Ramiro naquele cenóbio na Era de 971 (ano de 933), ou seja menos de dois anos depois de se ter tornado rei (v. António Losa, “Moçárabes em território português nos séculos X e XI: contribuição para o estudo da antroponímia no «Liber Testamentorum» de Lorvão”, in Islão e Arabismo na Península Ibérica. Actas do XI Congresso da UEAI, Universidade de Évora, 1986, pp. 273-289 + 3 ilustrações, ilustração I).

14 Fonte historiográfica composta no século XI d. C. / V h. pelo historiador IbnHayyân, o qual dispôs para o seu trabalho de muita documentação oficial autógrafa, pelo facto de ser filho de um secretário pessoal do famoso hâjib al-Mansûr (m. 1002 d.C. / 393 h.). O tomo V da obra em causa, que abarca o período entre 912 e 942, foi editado por Pedro Chalmeta (Madrid, Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1979), e traduzido para castelhano por Maria Jesús Viguera e Federico Corriente (Textos Medievales, 64, Saragoça, 1981).

15Muqtabis V, ed., p. 345 (ár.); trad., p. 259.


16 Este excerto da Crónica de Sampiro surge na tradução castelhana do Muqtabis V (v. supra n.19), p. 156, n. 6. Queremos referir ainda que, curiosa e significativamente, a antiga heráldica municipal de Gaia e de Viseu fizeram eco da memória que liga ambas as localidades ao episódio do rei Ramiro e durante o qual terá nascido o epónimo dos da Maia (v. Armando de Mattos. A Lenda do rei Ramiro e as armas de Viseu e Gaia. Ass. Cultural Amigos de Gaia. Porto, 2001 (ed. fac-sim. da de 1933).


17 A questão, não importante do ponto de vista genealógico, que subsiste, será se o seu filho, epónimo dos da Maia, Cid Alboazar Lovesendo Ramires, terá nascido quando o próprio Ramiro ainda era infante, entre 925 e 931, ou já depois de rei, após 931.

18 “Abû l-‘Asâr” é literalmente “Pai dos tempos [: o chefe carismático]”; mas também tem a leitura, que cremos, neste contexto, muito mais significativa, de, “Pai das linhagens”, ou seja epónimo, tronco de linhagem, progenitor). Cf. Federico Corriente. Dicionário Árabe-Español. 2.ed., Madrid: Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1986, p. 514.

19 “Cid”, forma dialectal magrebi para “Sayyid” (Senhor, no sentido de Dominus. Em propriedade designa o descendente do Profeta que vem pelo neto Al-Hussayn; o que vem pelo neto Al-Hassan é chamado de “Sharîf”: “Nobre”).

20 Esta última variante em “O” em vez de “A”, será mais um sinal de tafkhîm, fenómeno fonético prevalecente na fonética do árabe falado no Gharb al-Andalus, enquanto no demais da Península dominava a imâla. Sobre estas questões relativas á fonética do árabe e à sua evolução fonética, v. Federico Corriente. A Gammatical Sketch of the Spanish Arabic Dialect Bundle. Madrid: IHAC, 1977, as pp. 25 e 29, e especialmente as notas 10 e 15.

21 Lapso extremamente comum nos manuscritos árabes, com toda a problemática grafológica e linguística que naturalmente acarreta.

22 Não é incomum a presença da herança cultural árabe nos meios monásticos portugueses, pois no verso de alguns documentos que tinham perdido o seu valor probatório, aparecem exercícios de caligrafia árabe e cópia de pequenas frases no mesmo idioma, como, por exemplo, num documento de meados do século XIII, proveniente do Mosteiro de Alcobaça e hoje na Torre do Tombo, (v. ANTT. Alcobaça M6, doc.21).

23 Sobre esta tradução do chamado Livro de Rasis de árabe para português, v. António Rei. O Louvor da Hispânia na Cultura Letrada Peninsular Medieval. Das suas origens discursivas ao Apartado Geográfico da Crónica de 1344. Tese de Doutoramento em História Cultural e das mentalidades Medievais, FCSH-UNL, 2007, policop.; IDEM. Memória de Espaços e Espaços de Memória. De Al-Râzî a D. Pedro de Barcelos. Lisboa: Colibri, 2008, especialmente pp. 69-85; IDEM, O Redactor do Livro de Rasis. in VI Jornadas Luso-Espanholas de História Medieval, em Batalha, Alcobaça, Porto de Mós, 6, 7 e 8 de Novembro 2008; IDEM, A tradução do Livro de Rasis e a memória da Casa Senhorial dos Aboim-Portel, in Cahiers d’Études Hispaniques Médiévales, no 33 (2010), Lyon, ENS Éditions, pp. 155-172.

24 Apud Elías Terés, Linajes Arabes en al-Andalus (primera parte). Al-Andalus. t. 22, fasc.1 (1957) p. 55-111; Idem, Linajes Arabes en al-Andalus (conclusión). Al-Andalus. t. 22, fasc.2 (1957) pp. 337-376; Idem, Dos familias marwaníes de al-Andalus. Al-Andalus. t. 35, fasc.1 (1970) pp. 93-117.


25 Apud António Losa. Moçárabes em território português nos sécs. X e XI: contribuição para o estudo da antroponímia no "Liber Testamentorum" de Lorvão. Actas do XI Congresso UEAI – Islão e Arabismo na Península Ibérica. Univ. Évora, 1986, pp. 273-289.

26 Apud Alexandre Herculano. Portugaliae Monumenta Historica. ed. Academia Real das Sciencias, Lisboa, 1860.

27 António Rei, Descendência hispânica do Profeta do Islão – exploração de algumas linhas primárias., in Armas e Troféus. IX série, 2011-2012, Instituto Português de Heráldica, Lisboa, pp. 31-59.